Problemas financeiros, estresse durante a pandemia têm se refletido nas relações. Nunca houve tanto divórcio no Brasil quanto em 2020, mas há, também, casais que buscam resolver os conflitos.
Na capital do país e em diversos estados do Brasil, 2020 teve a maior quantidade de divórcios desde 2007, quando o Colégio Notarial do Brasil começou a fazer levantamento. No último ano, houve, na capital federal, 1.833 separações, ultrapassando o recorde de 2012, quando haviam sido registrados 1.755. Dezembro foi o mês mais crítico: com 203 divórcios definidos.
Os números estão aumentando desde 2016, mas muitos atribuem o recorde à pandemia, que colocou os casais para conviver mais intensamente juntos, com poucas distrações, menos convívio com amigos e familiares e muitas preocupações. Os maiores volumes foram registrados justamente entre maio e dezembro, quando os contágios pela covid-19 estavam em aceleração e havia medidas mais restritivas em vigor.
Para a advogada de direito civil Amanda Caroline da Silva, a quantidade de tempo juntos fez com que as incompatibilidades dos casais ficassem mais evidentes. “A gente comenta que a pandemia trouxe dificuldade psicológica para todo mundo e, no direito de família, as mágoas foram aumentadas, o desgaste emocional foi muito grande”, afirma. Se antes ela via a possibilidade de reconciliação entre muitos clientes, no ano passado, ela percebeu pessoas mais resistentes a mudar de ideia, mais decididas.
Amanda salienta as pesquisas na internet relacionadas a “divórcio”, que também aumentaram em 2020. Segundo dados do Google, as buscas pela expressão “como dar entrada no divórcio” cresceram 127% em maio do ano passado, comparadas ao mês anterior. “O divórcio, em si, não acontece em um momento só, mas os problemas, com os casais muito tempo juntos, ficaram latentes. O isolamento social fez com que as pessoas convivessem mais com as falhas dos outros”, acredita.
Mariana Viana Borges, juíza de paz e advogada de família, sentiu na pele o que muitos clientes estavam vivendo. A pandemia tirou o filho de 2 anos da creche e a colocou para trabalhar em casa, ao mesmo tempo em que cuidava da casa, da alimentação da família e do pequeno. Enquanto isso, o marido, Marcelo Borges, empresário, precisou continuar trabalhando fora e, no ramo da construção, ainda viu a demanda de serviço crescer.
O casal foi colocado sob um grande estresse: sobrecarga de trabalho, medo de infecção pelo novo coronavírus, necessidade de distrair a criança. Marcelo chegava em casa cansado, encontrava a mulher exausta e o filho cheio de energia, agitado, querendo brincar. Os conflitos começaram a aparecer e deixavam os dois ainda mais sensíveis e nervosos. Até a situação política do país causou desgastes, já que havia familiares que não acreditavam na gravidade da covid-19, o que desgastava as relações.
Mariana e Marcelo chegaram a passar uma semana separados, mas decidiram que valia a pena resgatar o relacionamento. “Por eu ser juíza de paz e também fazer divórcios, como advogada, achava que já sabia muito sobre relacionamento, mas começamos a terapia de casal e descobri que ainda tinha muito a aprender”, conta. Uma das conclusões à qual chegaram era de que Mariana precisava de uma funcionária para permitir que ela focasse no trabalho.
A princípio, Marcelo não percebia tal necessidade. “A terapeuta nos instruiu a como conversar, com os princípios do diálogo conclusivo e da resolução de problemas. Ela passava técnicas e, ali, a gente não ficava com raiva, não explodia”, relata o marido. Ele admite que tinha resistência ao tratamento, mas a abandonou quando viu que era o casamento dele que estava em jogo. “Deu um alívio muito grande para nós, e acho que a gente está num relacionamento bem mais saudável agora”, acredita.
Além da terapia de casal, há outras formas de tentar ter uma conversa mais saudável com o parceiro, sem brigas, acusações, ofensas. Independentemente de se optar pelo divórcio ou por reatar, a mediação familiar pode auxiliar. “É usada na área empresarial, no direito do consumidor e muito na área de família”, explica Maria Antonieta de Morais Prado, mediadora da Câmara de Mediação e Arbitragem Especializada.
Além de uma via que promove o diálogo, é uma alternativa à Justiça, embora possa acontecer com um processo judicial em curso. Outra característica fundamental da mediação é que ela visa preservar a relação entre as partes, o que é extremamente importante, principalmente quando envolve a guarda de filhos.
Maria Antonieta explica que a mediação, em essência, é uma negociação, e o mediador é alguém que vai facilitá-la, sendo uma terceira pessoa, neutra. “Um casal em conflito costuma, primeiro, tentar negociar entre eles; mas, às vezes, não consegue, porque envolve compreensão do ponto de vista do outro”, afirma.
Ela exemplifica com um casal que esteja brigando demais, por conta da sobrecarga de trabalho. “A mediação evita a espiral do conflito: os dois se veem em conflito, tentam conversar entre eles, vira um debate, uma polêmica, e pode chegar num ponto de acharem que não terão resultado. A tendência é isso se intensificar e as pessoas se verem como uma espécie de inimigo em casa”, lamenta.
Sem direcionar a solução, mas facilitando que os envolvidos a encontrem, o mediador vem para entender o conflito, o que está levando as duas pessoas até lá, e fazer com que um entenda o outro. “O pulo do gato é um entender o ponto de vista do outro. Às vezes, as pessoas acham que os interesses de ambos são incompatíveis, mas essa incompatibilidade é só aparente e é possível encontrar uma solução que atenda a todos”, garante.
Para o psiquiatra especializado em terapia interpessoal Luan Diego Marques, todo relacionamento com conflitos pode ser salvo, mas isso depende do compromisso das duas partes. Ele recomenda:
A empresária e confeiteira Carol Silva*, 43, é casada há 25 anos e lamenta a situação em que se encontra com o marido, atualmente. Nunca passaram um período de tantas discussões quanto no último ano, até hoje. Antes, se havia algum desentendimento, não durava mais do que uma noite. Dormiam e, quando acordavam, estava tudo bem novamente. “Éramos um casal feliz e, às vezes, as brigas eram por ele não ter folga”, conta.
Enquanto ela sempre atuou de casa, fazendo doces, ele trabalhava fora, seis vezes na semana, no ramo de shows — um dos primeiros a serem suspensos por conta da pandemia e que, até hoje, não retornou. “É difícil passar o ano com a pessoa 24 horas por dia. Agora, até uma colher é motivo de briga. Se eu coloco em um lugar, ele quer em outro”, reclama.
Carol acredita que os dois foram criados para só encontrar o companheiro à noite, depois de um dia de trabalho. E estavam acostumados com essa dinâmica. “Mas a pandemia tirou a rotina da nossa vida, aquela que já estávamos preparados para viver.” Ela segue, para ver até onde os dois aguentam, mas torce para que ele volte a ter serviços logo. Problemas financeiros e frustração por não trabalhar são questões que, aos poucos, minam as relações.
Para o psiquiatra especializado em terapia interpessoal Luan Diego Marques, foi comum, de fato, os conflitos aumentarem entre pessoas que trabalhavam o dia todo e que passaram a ficar juntos por muito mais tempo. “O núcleo familiar traz intimidade, o que gera uma proximidade boa em alguns aspectos, mas ruins em outras. Nas relações de trabalho, por mais que haja um conflito, o campo de negociação é mais restrito. No familiar, há mais espaço para falar, uma abertura maior, e, quando isso não é bem colocado, de forma madura, gera brigas”, explica.
Portanto, ele recomenda muito cuidado ao conversar sobre os problemas e ao se queixar do comportamento do outro. “O ponto não é falar, é como falar. O desafio de toda comunicação é como é colocado o conteúdo. Não dá pra colocar nem 100% de emoção nem 100% de razão. Com emoção demais, vem a raiva, o ódio, a ira, e a pessoa nem recebe o conteúdo. Imagina que aquilo não é real, é só raiva”, explica.
Luan orienta cuidar, antes, daquela emoção e, só depois, conversar. Além disso, recomenda sempre falar na primeira pessoa, contando o que sentiu, o que pensou, em vez de ficar usando o “você” em tom de acusação. “Em vez de dizer você foi arrogante, mal-educado, é melhor dizer: eu não sei se foi sua intenção, mas me senti agredido, ofendido. Assim, você não fala sobre o outro, fala sobre você mesmo”, exemplifica.
Em junho do ano passado, um cartório do DF foi o primeiro a lavrar um divórcio inteiramente por meio da internet. Em março do ano passado, um provimento do Conselho Nacional de Justiça dispôs sobre o divórcio on-line. “Para isso, o processo precisa ser consensual e não pode ter filhos menores de 18 anos. Com um certificado digital, as partes recebem o link e participam, com o tabelião, de uma audiência virtual, na qual ele pega o consentimento de ambos. Mesmo assim precisa de advogado”, explica a advogada Amanda Caroline da Silva.
Que os conflitos dentro de casa aumentaram é quase um consenso, seja entre pais e filhos, seja entre irmãos ou casais. É, no entanto, importante alertar que alguns casos não são simples brigas entre pessoas com muita intimidade e que estão forçadamente convivendo por muito tempo, mas, sim, questões graves de violência.
De acordo com dados divulgados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em abril de 2020, primeiro mês da quarentena, as denúncias de violência contra a mulher recebidas pelo número 180 aumentaram quase 40% em relação ao mesmo período anterior. Levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostra que os casos de feminicídio tiveram alta de 22% durante a quarentena.
egundo Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP, a pandemia acentuou a violência doméstica, na medida que expôs as mulheres que viviam em vulnerabilidade. Elas passaram a ficar ainda mais tempo com seus agressores, seja por começarem a trabalhar remotamente, seja por terem perdido seus empregos.
A jornalista e apresentadora Fernanda Gentil é casada com a também jornalista Priscila Montandon e, quando a pandemia começou, o casal lançou uma série de vídeos chamada Confinamento em casal. Neles, elas contam sobre a experiência de passarem 24 horas por dia juntas, trabalhando, cuidando da casa, se entretendo. Publicados toda terça-feira, chegaram a brincar que o título poderia ser “treta-feira”.
As duas tiveram conflitos que foram resolvendo aos poucos. Um deles dizia respeito ao “parcelamento da louça”, técnica usada por Fernanda e detestada por Priscila. “Se eu pego uma louça para lavar, eu vou lavar até o último pontinho da bancada. Eu gosto? Não. Mas faço. Já a Fernanda vai lavando em prestação”, comenta Priscila. Fernanda não limpa a pia, não bate o ralo.
Apesar dessas pequenas desavenças, Fernanda se orgulha, pois acredita que as duas estão valorizando mais o diálogo. “É conversar. Não tem jeito. Pode achar brega, clichê, chato, mas é muito importante. A gente só conseguiu uma harmonia de como seria a vida trancada em casa 24 horas por dia […], só chegamos no meio termo, no equilíbrio, conversando. Se formos brigar por cada ralo não batido, cada xixi do Romeu, não vai rolar”, sugere Fernanda.
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